O que são afinal carreiras artísticas?

Um dos trabalhos da exposição: “MAINTENANCE IS A DRAG (IT TAKES ALL THE FUCKING TIME)”, exibido na Academia de artes da Estónia, realizada pelos artistas-curadores  Katrin Enni, Aksel Haagensen, Kaisa Maasik, Kati Ots e suportada pelo Cultural Endowment of Estonia, o Student Council of the Estonian Academy of Arts, e a A. Le Coq. Tratava-se de uma exposição sobre a própria organização de exposições. Este trabalho relaciona todos os esquemas de financiamentos e entidades artísticas da Estónia.

Este post já é escrito em contexto do surto de COVID-19. Na verdade já o queria ter escrito bastante antes. Neste momento a cultura passa por um período de crise e certamente haverá uma reestruturação, no entanto, gostaria de desenvolver este tema tal com tem sido até agora.

Desde que fui para Belas-Artes tenho reparado que há muito desconhecimento do que se entende por "carreira artística", tanto da parte das pessoas fora da área como também da parte de estudantes ou mesmo profissionais da arte. Eu própria tenho vindo a desconstruir preconceitos e a reformular o meu entendimento sobre o que é uma carreira artística afinal. O que faz uma pessoa que estudou arte? Vou listar de seguida um conjunto de caminhos. O que tenho vindo a constatar é que o artista em Portugal normalmente tende a seguir uma estratégia mista, ou seja, combina diferentes proporções destes caminhos. 

Para já, é interessante entender o termo "artista". Este termos está conotado com uma série de conceitos, como o daquele que faz arte (o que implica reconhecer o seu trabalho como arte), e desta forma muitas pessoas preferem não usar este termo. Podem ser referidos termos como trabalhador da arte, profissional da arte, artista visual, pintor, ilustrador, artista plástico etc, tendo cada um destes termos as suas vantagens e limitações.

Dividi portanto uma série de categorias caminho que passo a listar, para nos fazer pensar o que são afinal percursos ou carreiras artísticas:

ARTISTA-POETA Eu chamo a esta vertente a criação poética, a criação porque sim, a que está inerente à essência do que é a actividade artística. O artista cria pelo ímpeto de criar. É este acto que está na essência da criação artística, e é muitas vezes um impulso meramente pessoal, menos estruturado, considerando menos factores externos, como os públicos ou os lugares de exposição. no entanto, é uma componente essencial à criação artística, e faz parte da investigação pessoal de cada um, do desenvolvimento do seu projecto artístico pessoal.
+ É aqui que se criam as bases para a investigação artística.
- Não existe remuneração para este trabalho. Trata-se de um investimento em investigação artística. Também existe pouca estrutura para o desenvolvimento deste trabalho, tem de ser criada pelo artista.

INVESTIGAÇÃO PESSOAL/APRENDIZAGEM Para um artista todos os momentos são de investigação. Isto significa que ler um livro, escrever, visitar exposições, participar em debates, ou mesmo por vezes deambular por lugares e falar com pessoas fazem parte de investigação para projectos artísticos. Um artista deve entender a níveis profundos a sociedade em que se encontra, a sua história e os seus contextos. Por isso muitas vezes se diz que o artista está sempre a trabalhar. Por outro lado, tal como para outras profissões, a aprendizagem deve acontecer ao longo da vida. Desta forma o artista poderá ou deverá continuar a participar em aulas, ateliers, formação, seminários, etc.
+ Trata-se de outra actividade essencial para a investigação artística e projecto pessoal. No caso da carreira académica, existe a possibilidade de recorrer a bolsas de estudo (para erasmus/doutoramento/seminários/estudos internacionais)
 - Na sua maioria não é remunerada e muitas vezes existe um custo associado, por exemplo, a inscrição em formação.

ARTISTA COMERCIAL Notei muitas vezes haver uma conotação negativa em Portugal com o termo "artista comercial". Contudo, fora de Portugal, é um termo que é utilizado com naturalidade. Ser artista comercial significa que o artista produz trabalho que faz parte do mercado da arte. Isso significa que o artista produz trabalho que é vendido em galerias comerciais, em feiras de arte, em leilões, etc.
O que são galerias comerciais? São galerias que funcionam numa óptica de venda e criação de lucro.
Em Portugal, a maioria dos artistas e a maioria das galerias são comercias. Isto acontece porque não existem muitas alternativas de financiamento à produção artística, sendo que, assim, opera a óptica do mercado.
+ Existe remuneração para este trabalho com base nas vendas (embora sem regularidade), existe uma estrutura para promoção do artista.
- Existe uma menor liberdade de criação: O artista deve produzir objectos que sejam adquiríveis e exibíveis em espaço de galeria Certos formatos são difíceis de incluir neste modelo, a performance, a instalação, o trabalho em espaços públicos, etc. Normalmente o que se pode fazer é o registo destes trabalhos, que é vendido depois na galeria. O artista pode também perder liberdade se acordar exclusividade com uma determinada galeria. A galeria fica com uma margem sobre os trabalhos dos artistas como contrapartida pela promoção, divulgação e organização.

ARTISTA NÃO COMERCIAL O artista não comercial trabalha com galerias não-comerciais, com instituições, espaços de residência, museus, etc. O que são galerias não comerciais? são portanto espaços que recorrem a outro tipo de financiamento e que podem financiar a exposição do artista, não colocando desta forma os seus trabalhos à venda. Uma forma de ver as instituições não comerciais é consultar as fontes do seu financiamento, que costumam estar disponíveis na página institucional. Também se podem incluir nesta vertente os concursos de arte, os fundos de financiamento, etc.
O artista não comercial trabalha por candidaturas. Isso significa que passa grande parte do seu tempo a preparar candidaturas a bolsas, residências artísticas, instituições e projectos. Também o tipo de trabalho artístico que desenvolve já deve ser diferente do trabalho acima mencionado. O trabalho não comercial pode assumir outros âmbitos, dimensões, espaços, formas de expressão, etc. O artista não comercial deve entender de gestão, curadoria, planeamento de projecto, contabilidade, orçamentação, etc, ou deve recorrer a ajuda. As candidaturas são processos complexos e morosos, e muitas vezes devem ser planeados com 6 mesas e 1 ano de antecedência.
+ Maior liberdade artística, apoio a realização de projectos com maior impacto na sociedade.
- Processo moroso e sem garantias de aceitação, resultando numa instabilidade tanto financeira como em termos de planeamento de projectos.

ARTISTA INDEPENDENTE O artista independente refere-se ao conjunto de actividades artísticas que é desenvolvida independentemente das galerias. A auto-promoção, a realização de exposições auto-financiadas, a dinamização de ateliers abertos, a divulgação nas redes sociais, etc, são um conjunto de iniciativas que podem ser desenvolvidas pelo próprio artista. No sentido de obter mais liberdade, o artista pode escolher não querer trabalhar com galerias ou instituições, definindo para si próprio os objectivos da sua carreira artística. Deve entender de marketing, possuir um bom domínio das redes sociais, bases de dados, e conhecimentos base de gestão e contabilidade.
+ Um maior controlo e flexibilidade dos projectos artísticos. O artista recebe a totalidade do valor da venda do seu trabalho, e pode até vendê-lo a um valor mais acessível ao público, pois não tem a margem da galeria. O artista fica mais em contacto com a comunidade artística, institucional e os públicos.
- O artista fica responsável por toda a sua promoção e divulgação, ficando com menos tempo disponível à produção artística. Pode ainda não dominar bem as ferramentas para uma boa divulgação.

COLECTIVOS E ASSOCIAÇÕES Os artistas podem formar colectivos e associações culturais e desenvolver um conjunto de iniciativas, desde a organização de eventos, galerias geridas por artistas, dinamização de residências, etc.
+ O facto de entenderem bem o meio pode resultar em projectos pertinentes. A união permite que se desenvolvam projectos em maior escala. A criação de equipas multidisciplinares permite jogar com as forças de cada um.
- Correm o risco de ficar fechados na "bolha" artística, devem abrir-se aos públicos exteriores. Por vezes, trabalhar com outros artistas é difícil, pois muitos estão habituados a trabalhar sozinhos ou dominam pouco as ferramentas de gestão, é necessário encontrar encontrar um grupo funcional e equilibrado.

ARTISTA ASSISTENTE É uma opção pouco falada mas existem na verdade muitos ateliers de artistas que precisam de assistentes. Infelizmente também são pouco divulgadas estas oportunidades, que normalmente são divulgadas de forma informal. Gostaria de ver mais estágios do IEFP a ser utilizados para esta vertente. Pode ser uma excelente forma de conjugar com uma fase inicial de carreira. O artista assistente pode trabalhar no atelier de outro artista ou colectivo na preparação dos materiais, organização, fotografia, arquivo, apoio a candidaturas, etc.
+ É uma forma de formação e de aprender a fazer com artistas mais experientes.
- Existem, por vezes, trabalhos mal remunerados nesta área, devem informar-se antes de aceitar. Existe menos liberdade artística.

CURADORIA / ESCRITA DE ARTE Embora sejam áreas que conheço menos bem, o artista pode escolher desenvolver-se nas áreas de curadoria ou escrita de arte. A primeira exige um grande domínio da teoria da arte mas também de ferramentas de gestão de projecto. A segunda exige domínio da escrita e da teoria de arte.
+ Permite colaboração com outros artistas e explorar outras vertentes da criação artística
- É ainda uma área com pouca expressão em Portugal, precisa de de ser estimulada e novos formatos criados.

ENSINO Muitas vezes a aprendizagem artística pode levar ao ensino. Neste momento estamos a passar por uma fase interessantíssima do ensino das artes, existindo muitas leituras sobre a mesma. Estou muito entusiasmada e curiosa para saber quando iremos ter estes novos modelos de ensino a ser desenvolvidos em Portugal. Desta forma, existem os caminhos mais tradicionais, em que o artista pode ensinar artes nas escolas e desenvolver uma carreira académica. Mas cada vez mais também o ensino da arte está a ser chamado para outras áreas de acção, pois está na base da discussão de valores, na motivação para o activismo, e na criação das chamadas "soft skills". O ensino das artes tem então surgido fora do contexto das academias de arte, como ensino complementar a outras áreas de conhecimento ou ainda com a dinamização de escolas como projectos artísticos. Desta forma, o artista pode usar a educação tanto de uma forma mais tradicional, mas também para desenvolvê-la enquanto projecto artístico.
Cabem aqui também os serviços educativos dos museus ou outras instituições.
+ É remunerada e existe uma área vasta de possibilidades. É uma das áreas fundamental a desenvolver na sociedade. Pode ser uma profissão mais estável (no caso de professores universitários, escolares) ou mais flexível (no caso de workshops, seminários, discussões)
- Exige algum planeamento e preparação, o artista também deve gostar de trabalhar com pessoas.

ORGANIZAÇÕES DE ARTE / ASSOCIAÇÕES / ORGANIZAÇÕES / EMPRESAS / TRABALHAR COM CLIENTES ou ENCOMENDAS
Para além de todos estes caminhos, existem muitos outros tipos de funções e possibilidades dentro de organizações culturais, associações ou empresas. Alguns artistas escolhem trabalhar com empresas. O vitrinismo, a cenografia, a publicidade, o design, a ilustração, são áreas desenvolvidas dentro das empresas que costumam recrutar ou colaborar com artistas.
Finalmente gostaria de indicar que uma forma de trabalhar pode ser trabalhar com encomendas. Fala-se muito pouco disto, mas ao longo da história da arte a maioria da pintura e escultura executadas foi devido a encomendas (para a igreja, nobreza e burguesia, na sua maioria). Os artistas contemporâneos também trabalharam por encomenda, veja-se o trabalho de cenografia feito por vários artistas plásticos, assim como encomendas para hotéis, igrejas ou murais.
Trabalhar com decoradores de interiores também cria muitas possibilidades para execução e aplicação de trabalho artístico.
+ Amplia o leque de possibilidade de trabalho e desenvolvimento de projectos artísticos, chega-se a um público mais alargado, amplia-se as possibilidades de remuneração, chegam-se a novos sectores.
 - No caso de um emprego, o artista pode ficar com pouco tempo para o seu projecto pessoal; no caso de colaboração com empresas, o artista deve abdicar de parte da sua ideia de projecto pessoal de forma a incluir a ideia do cliente,

ARTISTAS E EMPRESAS/ASSOCIAÇÕES acrescentando a esta lista infindável, os artistas podem criar outros produtos ou ideias ou acções que não me lembrei de incluir aqui. As acções podem começar como projectos artísticos e desenvolver-se para outras áreas e possibilidades.
+ Infinitude de possibilidades
- O artista deve possuir vários domínios de conhecimento. Deve exigir um investimento inicial.

Finalmente gostaria de indicar que, seja qual for o caminho escolhido, a colaboração é essencial. O artista deve procurar a sua comunidade com a qual possa discutir os seus projectos, pedir ajuda nas áreas que conhece menos bem e disponibilizar-se a ajudar. Quanto mais artistas forem bem sucedidos, melhor ficamos todos nós.

Espero que este texto ajude um pouco a compreender o que é trabalhar em arte, que esclareça quem pretenda desenvolver ou estudar esta área, e gostaria muito de saber as vossas experiências, testemunhos ou sugestões para completar esta lista!







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