As artes visuais, falácia do mercado das artes e as externalidades

Ao longo do meu percurso enquanto estudante de belas-artes e artista visual tenho-me deparado com muitas perspectivas e interpretações em torno das artes visuais. Tenho percebido que essas diferentes visões e conceitos têm como base um conjunto de referências que vão variando conforme a educação e o conhecimento que se tem das artes visuais, e também conforme as referências económico-sociais do lugar onde nos encontramos. Tenho olhado para estas perspectivas através dos meus dois pontos de vista: daquele que tenho enquanto economista, e do outro que tenho enquanto artista visual.

O que são artes visuais? "As Artes Visuais são as formas de arte como a cerâmica, desenho, pintura, escultura, gravura, design, artesanato, fotografia, vídeo, produção cinematográfica e arquitetura." (wikipedia)

Como se pode verificar o tema das artes visuais é muito abrangente, mas vamos então olhá-lo à luz da arte contemporânea, para se poder contextualizar. E por arte contemporânea entendo a arte que se faz nos dias de hoje (pois também dentro deste tema existe uma série de conceitos e interpretações).

Gostaria  então de reflectir sobre um tema que está relacionado com a tendência de associação das artes visuais ao mercado da arte. Tenho-me vindo a deparar, principalmente no cenário português, com situações da seguinte natureza:

  • "És pintora/artista? Vendes em alguma galeria?"
  • "Vou comprar uma pintura, daqui a uns tempos irá valorizar"
  • Existe um conjunto muito grande de concursos e pintura que pedem que se submeter 1 pintura, 1 desenho, 1 escultura, etc, com limite de dimensões e características.
  • Iniciativas destinadas a ajudar os artistas a vender o seu trabalho.
  • Feiras de arte, leilões
  • O percurso profissional do artista visual de ser "descoberto" por um galerista, fazer parte do circuito internacional das feiras de arte.
Todo este tipo de cenários está ligado ao que se entende por Mercado da arte. O mercado da arte é uma parte fundamental da produção de arte contemporânea, gerador de riqueza e de receita. 

  • Pode ser entendido, para os investidores, como uma espécie de "bolsa de valores", onde as obras materiais valorizam e desvalorizam conforme a cotação do artista. 
  • Pode ser visto como um "bem de consumo" baseado na experiência, e nesse caso, aproximar-se mais, por exemplo do mercado da música, da literatura ou mesmo da gastronomia, onde o coleccionador adquire uma obra pelo prazer do seu usufruto.

E é nisto que se resume a produção artística visual contemporânea?
Vou aqui enumerar somente alguns exemplos de iniciativas e projectos dentro das arte contemporânea, em particular das artes visuais, de forma um pouco aleatória, pois estes exemplos são infindáveis:
  • Uma artista que colabora e reflecte sobre a sociedade através de instalação, vídeo, imagem, colaborando com comunidades, entendendo o papel da mulher, trabalhando com museus de arte e etnografia.
  • Um artista e educador que estuda a forma de se abordar e educar para ecologia através da prática do desenho e outras artes visuais, e que colabora com centros científicos de ecologia e sustentabilidade
  • Uma associação que convida artistas visuais a reflectir sobre o tema do território de um região e a exibir em espaço público.
  • Um artista que desenvolve um projecto de vídeo ao longo de 10 anos em torno da identidade portuguesa, criando um movimento em seu redor.
  • Uma artista que desenvolve retratos falados, que colabora com comunidades que falam diferentes línguas através do desenho e da música
  • Um artista que desenvolve um projecto com um curador de uma casa das artes para refugiados e que termina desenvolvendo-a enquanto projecto comunitário e uma organização bastante semelhante que actua sobre o território e comunidades de um bairro em Portugal.
  • Um artista que desenvolve, partindo do desenho, cenografia, animação, arte pública, exposições, reflectindo sobre os conceitos de identidade e sociedade.
  • Um artista que atravessa todo o continente americano com uma tenda-escola, levando a cabo iniciativas artísticas transdisciplinares com as comunidades locais
  • Um ilustrador que sumariza, através da imagem, pensamentos complexos, tornando-se um veículo de comunicação.
  • .....

E que riqueza gera esta produção artística?
Em economia é o que se define por "externalidade positiva". A produção artística é um bem que produz um impacto positivo para a sociedade e que não se reflecte nos preços nem nos custos de produção. Temos para exemplo destes impactos positivos:
  • Impacto na saúde e no bem-estar
  • Impacto na educação ao longo da vida
  • Impacto no sentido de pertença, comunidade, identidade e propósito
  • Impacto na sensibilização política/económica/social/ambiental...
  • Impacto na investigação e produção de conhecimento
  • Impacto na criação de valores e de um legado para uma sociedade
  • Impacto na criação de património material e imaterial
É ainda uma "externalidade pecuniária", ou seja, a sua existência/produção tem o papel de valorizar os preços/ lucro dos agentes em seu redor. Exemplos:
  • Valorização imobiliária - vemos por exemplo a valorização de bairros depois de "ocupados" ou intervencionados pelas comunidades artísticas 
  • Valorização das actividades complementares: por exemplo, um festival de artes que tem como impacto o aumento da facturação das lojas e serviços de uma região.

Remeter as artes visuais para o campo do mercado é muito redutor pois não tem em conta o papel transformador, potenciador de diálogos e de investigação da arte contemporânea, e acarreta um custo social.

Entender a arte contemporânea é olhá-la como um campo de saber, uma lente que tem o papel de olhar e reflectir sobre o mundo, tal como têm os outros campos de saber: a matemática, a medicina, a psicologia, a antropologia, a engenharia, etc. É importante que as sociedades entendam e actuem desta forma para as artes (assim incluindo as artes visuais) nos seguintes pontos:
  • Chamar as artes visuais à colaboração com outros campos de saber
  • Entender e regulamentar as artes visuais no âmbito do mercado da arte e na sua vertente não-comercial
  • Entender as artes visuais enquanto geradoras de externalidades positivas e pecuniárias, regulamentando e criando mecanismos e estruturas para o seu financiamento e desenvolvimento.
Desta forma a arte é um campo de saber que pode actuar sobre o mundo e em relação com outros campos de saber: podemos ter uma abordagem artística na educação, na matemática, na biologia, etc.  Eu acredito que o futuro da arte contemporânea e em particular das artes visuais passará muito por este caminho: transdisciplinar, colaborativo, consciencializador.

Remeter, desta forma, a arte visual somente para o mercado da arte é destituí-la deste papel transformativo e tirar proveito de todo o seu potencial. No entanto, como a componente não comercial das artes não funciona eficazmente segundo as leis do mercado, necessita portanto de ser regulamentada, subsidiada e estimulada como outros sectores da sociedade com características de produção de externalidades positivas (investigação, saúde, educação, segurança, saneamento, transportes etc). Existe ainda um ponto muito importante a referir - a forma, a materialidade, a natureza e o local do trabalho artístico varia conforme este seja realizado na vertente comercial ou não comercial.
Em Portugal, na minha opinião, as artes visuais aparecem na sua maioria associadas à óptica de mercado, muito marcadas pelo mercado da arte e das galerias. Por isso temos uma vasta rede de artistas focados na produção de objectos (e temos excelentes pintores, desenhadores, escultores etc) e poucos na produção de arte não comercial. Agora a pergunta fica: como tirar partido deste conhecimento e transportá-lo para outro tipo de dinâmicas não comercias e criadoras de valor para a sociedade, numa óptica não-comercial/sem fins lucrativos?

E pode o artista não comercial fazer parte do mercado da arte? Pode: através da venda de objectos que sejam evidências da sua produção artística. Um exemplo é a comercialização de registos fotográficos ou livros resultantes do registo da produção artística. 

E finalmente, é importante entender que mesmo a arte comercial tem um efeito transformativo e também ela transporta os efeitos de externalidade positiva e pecuniária, tal como a arte não-comercial.

Na verdade, o mercado da arte poderá ser entendido como um reflexo da produção artística não comercial, de toda a investigação que se faz, de todas as iniciativas e descobertas que se fazem nos campos da arte contemporânea. É no entanto importante que se entendam estes dois mundos da arte, as suas diferentes naturezas e impactos na sociedade, tanto da parte das entidades no estabelecimento de políticas, como da parte dos artistas na decisão e consciencialização do seu posicionamento. 

Pensar que o "problema" da sustentabilidade das carreiras artísticas se resolve pela dinamização do mercado (através de exposições e de mostrar o trabalho dos artistas) é uma falácia, porque a maior parte do trabalho artístico não funciona em mercado por produzir um efeito de externalidade. Ainda assim, não se devem desencorajar as práticas de mercado. Na verdade o sucesso das práticas artísticas reside em encontrar o ponto de equilíbrio entre práticas de mercado e práticas de não-mercado (comerciais e não-comerciais).

Finalmente, é importante reflectir sobre qual o posicionamento da arte no contexto da pandemia mundial que enfrentamos enquanto elemento agregador, pedagógico e criador de valores.

"I had a dream last night. In my dream, our cities, communities and the natural environment are the museums and galleries of tomorrow. In my dream, the traditional exhibition spaces and art objects (material objects) no longer exist, and artists, cultural agents and creative practitioners collaborate with citizens, communities and professionals from other sectors (scientists, farmers and politicians) to design better systems and to co-create activities and programmes that encourage creativity and bring about social change."
Carmen Salas 


Algumas referências
Cultural goods and their positive externalities

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