O alpinista e a morte da pintura



Um dos capítulos do livro "Correspondences" do Tim Ingold fala sobre um episódio de uma residência artística decorrida na natureza. Para esta residência haviam sido convidados vários artistas e diferentes profissionais, entre eles antropólogos, como Ingold, e um explorador: um alpinista.

Depois de um dia de trabalho de campo a explorar a região montanhosa houve uma sessão de partilha. Ingold descreve o ânimo e entusiasmo com que esta partilha começa, com os artistas a partilhar as suas descobertas, os trilhos, as plantas que haviam encontrado, a forma das nuvens ou o pôr do sol. Este espírito muda radicalmente quando o alpinista começa a falar, em desânimo, confessando que resta muito pouco para explorar na superfície terrestre, que todos os picos já haviam sido escalados, e sobram agora algumas cavernas: é este o cenário com que os exploradores se deparam no presente.

O pressuposto que move o alpinista e os artistas parece desta forma ser diferente. Para o alpinista, basta escalar uma montanha uma vez, para a "conquistar", para os artistas, estar na montanha é um fluxo, uma união, uma interação contínua: a montanha pode ser escaladamúltiplas vezes, pois é sempre diferente cada vez que a escalamos. Ou, como dizia Heráclito de Héfeso: "Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!"

Esta ideia tem-me vindo a acompanhar e a ajudar a refletir sobre o meu processo de trabalho e assim como os acontecimentos da história de arte.

Nas aulas de pintura e arte contemporânea da universidade abordámos o tema da morte da pintura. Quando a máquina fotográfica foi inventada e a pintura deixou de servir o seu propósito de representação (este papel passou a ser assumido pela fotografia) os artistas dedicaram-se a assumir o papel de exploradores, levando a pintura a outros caminhos, formatos, suportes, composições, depurações, simplificações, abstrações. Em 1921 o pintor Rodchenko expõem 3 telas monocromáticas e afirma: "Levei a pintura ao seu fim lógico e mostrei três pinturas: um Encarnado, um Azul e um Amarelo. Tudo está terminado. São estas as cores principais". 

A ideia inerente tanto ao alpinista como ao Rodchenko está portanto ligada à morte: uma vez conquistado o objectivo exploratório, a ideia (ou a montanha) está "morta", já não tem utilidade ou propósito.

Desta forma, o que Ingold não descreve mas que também se verifica é que a ideia de exploração e "conquista" do território (neste caso o ideias) também está presente no campo da as artes.
Em oposição, o processo da pintura está associado à vida. Como afirmava Paul Klee:"Form, is death; form-giving is life."

O que me espantou ao longo do meu mestrado em Pintura foi desta forma o ênfase que se coloca no resultado e a pouca atenção que se dá ao processo; o cuidado com que se olha para o que acontece no resultado: neste caso a pintura, e o tão pouco que se olha para o que acontece dentro da pessoa, na sua relação com o ambiente, o contexto e os outros. Durante o mestrado um dos professores perguntou-me se não me zangava com os meus desenhos. A minha resposta é: não, não me consigo zangar com os meus desenhos, pois eles são uma fonte contínua de espanto, gratidão e curiosidade perante o mundo que nos rodeia. Eles são, continuamente, cartas de amor.

Por esse motivo me pergunto se os artistas que se comportavam como o alpinista se esqueceram do prazer de pintar, porque nesse prazer cabe a repetição, cabe voltar, muitas vezes, à mesma ideia e ao mesmo lugar. Porque nem nós, nem a ideia. somos iguais.

Há mais de 6 anos que participo com regularidade em sessões de desenho de modelo. Elas são, invariavelmente, fontes intermináveis de contemplação. Em 2019 escrevi, depois de uma sessão de desenho de modelo de 5h:

"Occasions like this remind me the reason why I started drawing in the first place. Drawing is not about the result, it’s not about whether is it Art or not. In many cases it is not considered to be Art, and only enters the sphere of crafts. Drawing is about the experience of Drawing. It is about the deep connection you feel with when you draw. It is silent intimacy. Drawing is about learing, about sharing. It is medidation: being absent and present at the same time. Drawing makes people get together. I’ll bring the word “community” in my luggage back to Portugal. It is so important for me. Drawing is being alone. I had few friends when I was little, drawing was my company. In all these things, it helps us making some sense out of this complex world, and to find the beauty in everyday, common things."


Neste sentido, procuramos uma posiçao de humildade ao invés de uma posição de conquista, de diálogo ao invés de dominação (da ideia ou do território). Numa época em que se discutem temas como o colonialismo ou a crise ambiental, conseguimos encontrar paralelismos nestes diferentes posicionamentos?

Termino com um texto de Ruskin, que refere, com delicadeza, o desenho que acontece dentro de nós:

"From the most insignificant circumstance, — from a bird on a railing, a wooden bridge over a stream, a broken branch, a child in a pinafore, or a waggoner in a frock, does the artist derive amusement, improvement, and speculation. In everything it is the same; where a common eye sees only a white cloud, the artist observes the exquisite gradations of light and shade, the loveliness of the mingled colours — red, purple, grey, golden, and white; the graceful roundings of form, the shadowy softness of the melted outline, the brightness without lustre, the transparency without faintness, and the beautiful mildness of the deep heaven that looks out among the snowy cloud with its soft blue eyes; — in fact, the enjoyment of the sketcher from the contemplation of nature is a thing which to another is almost incomprehensible. If a person who had no taste for drawing were at once to be endowed with both the taste and power, he would feel, on looking out upon nature, almost like a blind man who had just received his sight."


Fontes:
http://www1.ci.uc.pt/iej/alunos/1998-99/cbs/entrada7/leftfrm.htm
https://www.brainpickings.org/2015/07/10/john-ruskin-drawing/?fbclid=IwAR2mVWbs_0i9M-j0hD8M55OrzyOUundE6yza4fdDQCUxbZXrIIjoLjejaR8
https://politybooks.com/bookdetail/?isbn=9781509544103&subject_id=16

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