"Orgulhosamente sós" na arte contemporânea - o ensino da "arte pela arte" e seus limites

Crianças fotografadas perto de Coimbra, durante o período de Estado Novo. Junto aos professores ficaram os alunos "exemplares" de fato e sapatos, a a um canto os restantes, descalços e com roupas modestas.



Quando iniciei a minha experiência na faculdade de Belas Artes trazia comigo muitas expectativas e esperanças. Deixava para trás 5 anos de um ensino muito conservador na Universidade Católica Portuguesa e vários anos de trabalho em contexto bastante formal. A prática artística foi surgindo para mim como um espaço para a expressão e liberdade, e foi com essa intenção que entrei na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

A experiência na faculdade foi incrível e fui encontrando nela espaço para encontrar o meu sentido de propósito. Iniciei uma licenciatura em Desenho e em seguida enveredei pelo Mestrado em Pintura, uma vez que o meu trabalho tendia cada vez mais para a prática das artes visuais no contexto da arte contemporânea. No entanto senti que essa liberdade que me acompanhava desde o início se começava a fechar dentro dela própria. Ao trabalhar dentro do âmbito da arte contemporânea comecei a ser questionada perante a validade do meu trabalho: é arte ou não? É boa arte? Parecia haver um conjunto de regras invisíveis que eu própria desconhecia, coisas que se podiam fazer, coisas que não se podiam fazer. Bons e maus artistas. Aqueles que entendem o trabalho e os outros que não o conseguem entender. A sensação de não estar à altura era constante. Porque é que eu trabalhava? O que deve ser uma obra de arte? Também o próprio objectivo de estar na faculdade parecia estar relacionado com o facto de aprender a ser artista, como conseguir ser um artista, como ser reconhecido enquanto artista, validado pelas entidades adequadas (curadores, universidades, instituições). Isto também me causava confusão, afinal, via repetirem-se os mesmos padrões que tinha vivido na Universidade Católica.

Ao longo dos anos que estudei nas Belas-Artes, em particular nos dois últimos de Mestrado em Pintura houve um ensinamento de base fortemente relacionado com o pensamento da "arte pela arte". A "arte pela arte é uma corrente filosófica do início do século XIX que defende a separação da arte de qualquer propósito didático, moral, político ou utilitário. A arte é um princípio e um fim e m si próprio, e a sua finalidade reside essencialmente na própria experiência estética. Este pensamento foi uma inovação no século XIX, uma vez que consistiu numa separação da arte ao serviço da igreja ou da burguesia. Foi com esta base que estudei arte na faculdade de belas artes, e assente nestes princípios estudámos desenho, pintura, estética, história de arte. Na verdade, durante estes anos, pensei que esta era a única finalidade e forma de fazer arte. 

A maior surpresa surgiu no meu semestre de Erasmus na Academia de Belas Artes de Tallinn. Nas aulas de teoria da arte somos confrontados com um programa focado em temas sociais, política, ambiente, antropologia, tecnologia, ciência, educação etc. Somos encorajados a expressar a nossa opinião e a utilizar a estrutura do pensamento artístico  (aberto, especulativo, associativo, não linear, com deslumbramento, pensando de forma diferente) para o fazer. Trabalhamos em grupo, não há avaliações apenas um sistema de aprovação/reprovação. A maior surpresa foi descobrir que isto também era uma opção, pensar na arte desta forma. 

A minha prática de desenho sempre esteve associada a uma ideia de propósito. Há o propósito que busco em mim e que procuro despertar nos outros, desta forma esta segunda abordagem ao pensamento artístico pareceu-me bastante válida. Foi nesta altura que questionei a verdade absoluta da expressão "arte pela arte", e percebo que esta foi sempre questionada ao longo da sua existência. Não era uma verdade mas sim um movimento, uma cultura ou contra-cultura, que fez sentido num contexto e deixou de o fazer noutro. Fortemente questionada por autores como Frank Loyd Wright, John Ruskin, Friedrich Nietzche, Edgar Alan Poe ou Walter Benjamin, que criticaram que esta era em si uma impossibilidade, um elitismo.

"Art for art's sake is the philosophy of the well fed" 
Frank Loyd Wright

É importante então entender que os movimento "arte pela arte" e "arte por um propósito" não são verdades absolutas mas sim diálogos em permanente construção, referências que podemos utilizar para aprofundar o nosso conhecimento sobre a arte.

Finalmente, é ainda interessante destacar que ambos os movimentos aparecem associados a doutrinas políticas: "arte por um propósito" surge associada a ideiais marxistas e foi uma ideia instrumentalizada por movimentos comunistas totalitários. Já a ideia de "arte pela arte" está associada a ideias de teologia da arte e instrumentalizada por políticas fascistas. Desta forma ainda me fez mais sentido, entendendo o passado político de Portugal (fascismo) e da Estónia (comunismo) a prevalência destas duas correntes de pensamento no ensino até hoje.

À luz das aprendizagens ao longo do meu mestrado (principalmente a experiência portuguesa) a minha crítica dirige-se então, não ao ensino baseado na premissa "arte pela arte", mas à ausência de referências ao ensino da "arte por um propósito". Não abordar esta segunda corrente de pensamento é negar uma série de possibilidades de criação artística e afastar os artistas portugueses do diálogo internacional. É uma forma, propositada ou acidental, de nos mantermos "orgulhosamente sós" no ensino da arte contemporânea.

Termino este texto fazendo referência a um parágrafo de um artigo sobre o ensino de artes em Portugal publicado no fórum "art and education" e relembrando a primeira fotografia deste artigo: durante o período do Estado Novo, um professor separa os "bons" alunos, bem vestidos e com boas notas, dos "maus" com roupas más e descalços. A pedagogia e o elitismo de mãos dadas fazem parte do nosso passado recente (e presente). Muitos dos professores activos portugueses (hoje com idades compreendidas entre os 50-70 anos) frequentaram a escola no tempo em que esta fotografia foi tirada e seriam eles próprios os alunos que ficavam dentro ou fora da fotografia. Que aprendizagem ou valores terão trazido consigo ou mudado no seu ensino?

"(...) os programas de arte conservadora em universidades que são restringidas pelos tipos de reformas públicas que afetam muitas academias do sul da Europa. Com a falta de renovação de empregos, as universidades de arte portuguesas muitas vezes deixam de cumprir a responsabilidade de uma instituição de ensino de responder a temas urgentes e atuais das últimas décadas (como estudos de gênero, pós-colonialismo e estudos ambientais) e adaptar seus programas e diversificar seus quadros. Em vez disso, os programas mais tradicionalmente organizados estão sujeitos a cortes severos e supressão ideológica, suspendendo o desenvolvimento das habilidades críticas de seus alunos. À medida que as propinas aumentaram, também aumentaram os números de matrículas, deixando os alunos cada vez mais anónimos para os seus professores, à medida que se graduam mais rapidamente no desemprego que caracterizou o Portugal pós-recessão. Além disso, a ausência de modelos fora do setor cultural comercial muitas vezes sobrecarregou grande parte da geração mais jovem de artistas com a falta de exposição a diferentes modalidades de investigação que a pesquisa artística pode inspirar, excluindo a imaginação de possíveis futuros e modos de prática."



Fontes

https://www.artandeducation.net/schoolwatch/192859/maumaus-independent-study-program-acknowledging-space-for-trembling-with-the-world

https://www.everythingmusicals.com/cradle/2018/04/art-what-is-art-for-arts-sake-.html

https://thoughtservings.com/art-for-arts-sake-wisdom-from-oscar-wilde-edgar-allan-poe-friedrich-nietzsche/

https://en.wikipedia.org/wiki/Art_for_art%27s_sake




 

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